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  • Rubens Curi

O ARTISTA, O CONFLITO E O PATRÃO PADRÃO

Atualizado: 6 de nov. de 2019


“A imagem da coisa não é a coisa. A ideia do fato não é o fato.”

Jiddu Krishnamurti


“Me deram um nome e me alienaram de mim.”

Clarice Lispector


Há muito que observo ser o conflito psicológico o leito base do qual emergem a maioria das produções artísticas e seus desdobramentos, sendo mais enfaticamente visível naquelas que têm a palavra como veículo para a sua elaboração, desenvolvimento e construção. No bojo dessa observação também está a percepção de que onde há conflito psicológico há inevitavelmente sofrimento, e sua faceta talvez mais traiçoeira, os mecanismos que desenvolvemos para fugir dele. Tal conflito se reflete na tensão entre aquilo que é e a projeção daquilo que deveria ser, ou não ser. É nesse “entre” que são elaborados muitos dos parâmetros e paradigmas que regem as relações entre pessoas, normalmente a partir de narrativas cujos fundamentos tem bases profundas nos binômios prazer/dor e punição/recompensa. É nesse ambiente de relações que a maioria dos seres artistas vem atuando.


Dessas narrativas, ao longo da história, e conforme a cultura em que vivemos, formamos nossa identidade cultural, pessoal e coletiva. Do jogo de forças entre as identidades, nascidas e desenvolvidas no seio do conflito, e consequente sofrimento, é que construímos nossas sociedades, com seus valores materiais e imateriais. Nesse processo também observo que o sofrimento se faz comparsa do medo, e que essa parceria tem subvertido e corrompido valores éticos. Muito mais do que aos valores civilizatórios, refiro-me aos fundamentais, presentes no âmago do viver cotidiano. É neste que se desenvolve a personalidade e se forja o caráter, estruturas a partir das quais se estabelecem os relacionamentos.


Pelo já vivido até aqui, posso considerar que em nós, seres humanos, as urgências por solucionar as questões subjetivas do viver, que é fundamentalmente relacionamento, desde muito cedo nascem do quanto nossa sensibilidade é afetada positiva ou negativamente pelo entorno. Quando positiva, será vivenciada como fonte de prazer. Quando negativa, como fonte de sofrimento. Na busca de eliminar ou minimizar o sofrimento e, também, assegurar a presença de algum prazer, a maioria de nós acaba por se adaptar ao conjunto de soluções morais e ideológicas estabelecidas pela cultura em que vivemos, habitual e habilmente ensinadas pelas vias da educação convencional. Além da inegável facilidade de acesso e interação com os outros do grupo, essa adaptação gera a sensação de se estar fazendo a coisa certa, o que acaba por justificar a necessidade de camuflar boa parte da sensibilidade.


O dito artista, independentemente de se utilizar de uma linguagem artística ou não, é aquele que em algum momento “escolhe por não conseguir” cercear a sua sensibilidade. De alguma forma ele sabe que as soluções prontas funcionam como um “sossega leão”. Isso faz com que sua inteligência interna se mova no sentido de buscar outros caminhos possíveis, rumo à uma sensibilidade fluida e descomprometida com o sofrer. Ele atua, primordialmente, no âmbito das relações humanas e, em elas terem sida estabelecidas com base no conflito psicológico, e sendo este a determinar as regras e normas que orientam as relações, o ser artista, comumente movido pela visão de transformações de caráter libertário, acaba por se exercer a partir dessa mesma base, enredando a si e aos outros mais ainda nos conflitos que a sustentam.


O drama das histórias pessoais e coletivas desde há muito nos indicam que as estruturas psíquicas básicas que levam a humanidade ao sofrimento não tiveram alterações significativas, apesar dos esforços e atuações dos inconformados e insatisfeitos que ao longo da história colocaram sua sensibilidade a serviço da busca de uma saída. Tivemos muitas propostas de imensa potência, mas que acabaram por se revelar ineficazes, tanto por terem sido aliciadas pelas facilidades da superficialidade, como por se revelarem suscetíveis às interpretações de acordo com as mudanças de humor cultural de um grupo, sociedade ou civilização, conforme os interesses do poder vigente. O fator que gera a ineficácia, a meu ver, tem sido a presença de um padrão de raciocínio cristalizado e autoritário, cujo “defeito” reside no fato, também já indicado por Einstein, de que a busca da solução dos conflitos é realizada pelo mesmo mecanismo de pensamento que os gerou. Funciona como uma autoridade interna capciosa, que podemos chamar aqui de Patrão Padrão, à qual temos delegado, sem questionamento, o poder de condução de nossas vidas e atos.


Passar o resto dos tempos trabalhando o conflito e o sofrimento de forma a apenas expô-los, ou propondo saídas a partir do próprio jogo de forças que os engendraram, só faz intensificá-los. Esse procedimento, aliado à figura mítica atribuída ao artista e sua obra, eleva o sofrimento à condição de divindade.


É claro que inúmeros artistas criadores, possuidores de alta inteligência e potente capacidade de compaixão, sim, colocaram a céu aberto o “defeito”, de forma a que pudesse ser dissecado, conhecido e desmascarado. Mas, o Patrão Padrão fez deles e de suas obras, blablablás investigativos, discursos palatáveis e entretenimento verborrágico revestido de alta intelectualidade. Essas obras, quando não levadas ao ostracismo, foram institucionalizadas e adaptadas a um status quo limitante, fragmentário e subserviente aos valores de fácil leitura, solo fértil para conceituais maniqueísmos e sectarismos.


Século após século os artistas vêm se expressando a partir de seus sofrimentos e os da humanidade, e o dito cujo continua presente, e pior, quanto mais as várias facetas do sofrimento se tornam explicitadas pela ótica do Patrão Padrão, mais geram conflitos e fragmentação interna e externa, reforçando identidades machucadas e levando a mais sofrimento para si e para os outros. As narrativas do sofrimento vão se sofisticando e ficando mais e mais dissociadas do fato em si, inclusive reivindicando para elas a propriedade sobre a realidade do fato que as gerou.


O sofrimento é uma roda dentada que, além de não parar, amplia seu tamanho e a extensão da sutileza de sua ação. Em tempos de imposições conceituais que remetem à obrigatoriedade de ser feliz, amar-se a qualquer custo, tolerar as diferenças, ser politicamente correto, ter um milhão de amigos e venerar o planeta, proliferam, feito pandemia a dar voltas livremente pelo globo terrestre, a angustia, a ansiedade, a depressão e a fragmentação das relações.


Seja qual seja a motivação psicológica, se ela nasce da insatisfação com o que é, e leva a ações que tenham como condutor o medo de não vir a ser aquilo que se imagina, o conflito estará presente e com ele o virulento sofrimento. O vir a ser psicológico, deflagrado pelo nosso hábito de medir melhor/pior pela comparação a partir da imagem que fazemos das situações e dos outros, costuma seguir pelo subterrâneo e multifacetado mundo da inveja, por mais que se apresente revestido de dignas intenções. Ao não se iniciar a caminhada a partir do que é, mas a partir de tal formato de abordagem sobre o que deveria ser, está dada a largada para um processo que lança pelo caminho insidiosas sementes de mais e mais batalhas por vir a ser. Ao glorificarmos o vir a ser, partindo da insatisfação invejosa, abrimos mão da racionalidade e corrompemos nossa capacidade de percepção e reflexão a partir do que é. O processo criativo, magnífica ferramenta para a vida física e psíquica do ser humano, fica apequenado, refém de referenciais viciados e a serviço do conflito. Um embotamento que limita sobremaneira sua capacidade criadora, que, para se dar efetivamente, necessita de liberdade em relação aos condicionamentos impostos pelas autoridades psicológicas exercidas pelo Patrão Padrão.


Enquanto houver conflito psicológico o artista tenderá a ser submetido aos serviços do Patrão Padrão. Quanto mais intensos os conflitos internos nas relações humanas, mais a produção artística será tragada pelo universo do entretenimento, apenas e tão somente. Esta é uma realidade que precisa ser encarada de frente, com coragem e seriedade, sob pena de continuarmos colaborando para a replicação constante da cruel roda dentada do sofrimento. Em não sendo assim, os artistas, ditos de alta sensibilidade, continuarão sendo aqueles que, movidos por suas angustias, mais contribuem para a proliferação de sensibilidades feridas. E o que é mais cruel, para o crescimento do batalhão de fervorosos soldados guerrilhando sob a bandeira das narrativas de sofrimento e em nome da sacralização do sofrer. Está estabelecida, assim, a manutenção da autoridade do Patrão Padrão.


Não será a angustia, presente no artista e em seu processo criativo, e que muitas vezes se estende à sua vida pessoal provocando estragos imensos, um grande alerta de que se está indo por um caminho equivocado? A questão é que desenvolvemos a crença na cultura de que essa angustia é fundamental para criar. Criar o quê? Relatos e mais relatos de submersões no sofrimento e fugas dele? Isso está tomando um rumo que, além de patético, apresenta-se extremamente ameaçador para a sanidade das relações humanas.


Se olharmos nossas sociedades por fora, pode nos parecer que tudo esteja indo muito bem, com inovações tecnológicas e científicas surpreendentes; relações sociais se abrindo para a tolerância e abraçando a diversidade; o pensamento se sofisticando cada vez mais; as políticas públicas buscando “cuidar” mais e melhor das pessoas; a dita arte alcançando requintes inimagináveis e públicos imensos. Mas basta lançar um olhar mais atento para as periferias internas e externas e veremos a miséria sendo perigosamente administrada por neuroses e paranoias cada vez mais profundas e complexas, mal e porcamente disfarçadas, por exemplo, no reativo conteúdo publicado nas redes sociais planeta a fora. Isso sem falar na fome, no desamparo, na sórdida injustiça social e nos constantes conflitos bélicos em nome do poder de toda sorte de ideologias religiosas, filosóficas, raciais, culturais, econômicas, sociais e por aí vai. Ou me dirão que violência, sectarismo e indiferença não estão acontecendo entre nós, humanos?


Após enxergar a coisa toda sob essa perspectiva não há como continuar embebido na sangueira dos murros em ponta de faca e cabeçadas na parede. Afastar-se da influência do Patrão Padrão ao utilizar uma ou mais linguagens artísticas específicas é ato necessário para que seja possível o comprometimento com outro suporte, outro material, outra abordagem estética e ética: a substância presente entre humanos em relação, a partir do que é, sem leituras e interpretações conduzidas por um determinado método ou ideologia, de viciados cânones estéticos ou fantasia de um futuro melhor, mas, pesquisando e dissecando pessoalmente, em si, os mecanismos internos que deflagram, potencializam e mantém o conflito psicológico e suas sofisticadas narrativas de sofrimento como estrutura básica de nossas fragilizadas relações pessoas e coletivas.


Sob a ótica das relações que construímos a partir do conflito e de suas narrativas de sofrimento, o artista não passa de um entertainer, eventualmente bem pago e/ou glorificado, a serviço do voraz estômago do Patrão Padrão. Este, utilizando-se de sofisticados ardis, e para saborear mais prazerosamente o alimento que o sustenta, promove a insatisfação artística a uma espécie de santidade mítica – uma abstração confortavelmente impalpável a hipnotizar as vítimas que o alimentam, e ao crescimento e à eficiência da sua roda dentada do sofrimento.


Tenho, para mim, que o eixo motriz da arte é a consciência humana per se, e não as linguagens utilizadas pela abstração que ela criou para se referir a si mesma. Estas, são meras ferramenta de comunicação via narrativas de vida. Aquela, é a própria vida. Que confusão temos criado ao ainda não termos compreendido a crucial diferença entre vida e narrativa de vida, principalmente no âmbito psicológico!



A Oficina SOFRER OU NÃO SOFRER, EIS A QUESTÃO! e as RODAS DE CONVERSA: NARRATIVAS DO SOFRIMENTO são propostas de mergulho, a partir da Liberdade Criativa, na investigação do sofrimento, com o intuito de desmascarar sua cruel narrativa e angustiante presença em nossas vidas.


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