Este é o segundo artigo, de quatro, escrito por Robert.F. Steele, MA para o projeto The Immeansurable, do Krishnamurti Educational Center.
Lancei-me à tradução dos artigos por considera-los de grande valia para a investigação a que tenho me dedicado, a questão do sofrimento nas relações humanas. E também, pela forma esclarecedora com que o autor expõe e contextualiza a visão krishnamurtiana, fonte principal da minha pesquisa para ministrar a Oficina Sofrer ou não sofrer, eis a questão!
Para aqueles que desejem ler este primeiro artigo no original, segue o link:
Introdução
No primeiro artigo desta série sobre o eu e o ego, apresentamos a visão tradicional em relação ao ego, ou seja, que ele é essencial para a saúde mental, pois os seres humanos precisam fundamentalmente de um senso distorcido da realidade para continuar a funcionar eficientemente. Isso foi contraposto às posições heréticas de Ernest Becker e J. Krishnamurti, que sustentavam que o ego é perigoso e responsável por muitos dos conflitos e sofrimentos globais. Foi Krishnamurti, no entanto, quem apresentou o epítome da heresia a respeito do eu e do ego. Neste artigo examinaremos a visão de Krishnamurti sob a ótica das recentes descobertas no campo da neurociência. Acho essa comparação especialmente interessante, pois as posições de Krishnamurti foram divulgadas pela primeira vez no final dos anos 20, muito antes de haver qualquer tecnologia para investigar cientificamente as operações e funções do cérebro. O que me faz lembrar das posições de Copérnico e Galileu, quanto à inflamada heresia sobre a Terra não ser o centro do universo.
Grande parte do material apresentado é de competência de especialistas e, como não sou neurocientista, vou depender muito de extensas citações, a fim de garantir a fidelidade das informações. Meu papel será montar um panorama das várias visões que, espero, após serem apresentadas, tragam luz ao assunto “eu e ego” a partir da comparação entre o ponto de vista científico e a visão de Krishnamurti.
O eu/ego é uma coisa real?
Krishnamurti afirmou que não somos nada, que o eu não é real, no sentido de não ser uma coisa. O que a ciência do cérebro tem a dizer sobre essa posição tão radical? Antonio Damasio, um eminente neurocientista, diz em seu livro Self Comes to Mind: Constructing the Conscious Brain: “As respostas são inequívocas. Há de fato um eu, mas é um processo, não uma coisa, e o processo está presente em todos os momentos em que nos presumimos conscientes. Podemos considerar o processo do eu a partir de dois pontos de vista. Um é o ponto de vista de um observador que contempla um objeto dinâmico ... O outro, é o do eu como conhecedor (knower).” (Damasio, 2010, Amazon loc. 205).
Se não existe uma estrutura física central para o eu, uma auto-estrutura (self-structure) que comanda o cérebro, um eu que está no controle, o que cria esse estranho senso de si mesmo como sendo o operador do sistema? Uma resposta pode vir da observação de como o cérebro produz a consciência, já que esse senso de si mesmo como operador e conhecedor reside na consciência.
Consciência é uma propriedade emergente. De momento a momento, diferentes módulos ou sistemas competem por atenção e o vencedor surge como o sistema neural subjacente à experiência consciente daquele momento. Nossa experiência consciente é montada em tempo real, à medida que nossos cérebros respondem a estímulos em constante mudança, calculam possíveis cursos de ação ... A unidade psicológica que experimentamos emerge do sistema especializado chamado "o intérprete", que gera explicações sobre nossas percepções, memórias e ações; e o relacionamento entre eles. (Gazzaniga, 2011, p. 102).
- Krishnamurti
A meditação é realmente um completo esvaziamento da mente. Então há apenas o funcionamento do corpo, apenas a atividade do organismo e nada mais; as funções do pensamento não se identificam como o eu e o não-eu, pois são mecânicas, assim como o organismo. O que gera conflito é o pensamento que se identifica com uma de suas partes ao tornar-se o eu, o eu e as várias divisões nesse eu. O eu não é necessário em momento algum. Não há nada além do corpo e da liberdade da mente, que só pode acontecer quando o pensamento não está criando o "eu". Não há um eu a ser entendido, mas apenas o pensamento que cria o eu.
O Cérebro Invisível
Parece, então, que há uma concordância entre Krishnamurti e a ciência do cérebro de que o eu não é uma estrutura física ou algum elemento imutável ou, talvez, sagrado ou eterno. É uma função que emerge da atividade cerebral, assim como tudo o que constitui a consciência, mas também é invisível para si mesmo no que diz respeito às operações internas. Foi preciso tecnologia para que os pesquisadores pudessem espiar dentro do cérebro para entender as suas funções.
A faculdade com a qual nós pensamos o mundo não tem capacidade de perscrutar dentro de si mesma, ou de nossas outras faculdades, para ver o que as motiva. Isso nos torna vítimas de uma ilusão: a de que nossa própria psicologia vem de alguma força divina, essência misteriosa ou princípio todo-poderoso (Pinker, 1997, p. 4).
Uma vez que as funções do cérebro não fazem parte da consciência, isso poderia explicar, pelo menos em alguma medida, por que o senso de si parece tão real; não há nada na consciência para competir com a autoimagem ou contradizê-la, pois ela é a única habitante da consciência. Krishnamurti parece concordar com isso em seus comentários sobre o fato de a consciência ser seu próprio conteúdo. Ele a apresenta como uma unidade, sem separar a parte que o eu ocupa na consciência juntamente com os outros elementos que em qualquer momento podem fazer parte dela.
- Krishnamurti
A consciência é o seu conteúdo. O conteúdo é consciência. Os dois não estão separados. Isto é, os pensamentos, as ansiedades, as identificações, os conflitos, a aflição, os apegos, os desapegos, os medos, os prazeres, a agonia, o sofrimento, as crenças, as ações neuróticas, tudo isso é minha consciência.
Além disso, se olharmos novamente para a citação acima, de Damasio, veremos que ele propõe ser a consciência composta de objetos e um conhecedor(knower) desses objetos. Certamente parece assim, mas uma visão mais ampla pode ver que os objetos e o conhecedor de objetos são realmente um fluxo de consciência. Será disso que Krishnamurti está falando quando coloca o pensador e o pensamento como sendo um só?
- Krishnamurti
A raiz da contradição é essa divisão entre pensador e pensamento e eles não poderem ser integrados. Mas, se alguém observar a estrutura do pensador, verá que o pensador não está quando o pensamento não está. É o pensamento que gera o pensador, o experimentador, a entidade que cria o tempo e a entidade que é a fonte do medo.
Por trás da tela da consciência está o cérebro em funcionamento, e o que está acontecendo dentro das funções silenciosas do cérebro é incrível. Bilhões de células nervosas chamadas neurônios são criadas nos estágios iniciais do desenvolvimento do cérebro e, ao longo de nossa vida, conexões semelhantes a raízes, chamadas axônios, estão constantemente sendo adicionadas aos trilhões de conexões entre os neurônios através de locais chamados sinapses. “Além disso, quando novas sinapses se formam em um neurônio, o comprimento e o número de ramificações em sua “árvore” dendrítica frequentemente se expandem também, aumentando a força e o número de neurônios que podem se comunicar com ele.” (Sapolsky, 2017, Amazon loc 2283). Essas conexões estão “aprendendo”. Uma vez que essas redes estejam instaladas, conjuntos do tipo matrizes se interconectam por meio de reações elétricas e químicas para formar representações de elementos no mundo externo. Basicamente, essas representações são conjuntos de neurônios simultaneamente reagentes que, quando estimulados, causam o que chamamos de memórias. Eles podem ser reunidos e baixados(downloaded) para se tornar um fluxo de consciência, que também contém um senso de eu afirmando ser responsável pelo fluxo. A ciência do cérebro diz que um senso de eu como um centro é necessário para que haja consciência.
A mera presença de imagens organizadas fluindo em um fluxo mental produz uma mente, mas, a menos que algum processo suplementar seja adicionado, a mente permanece inconsciente. O que falta nessa mente inconsciente é um eu. O que o cérebro precisa para se tornar consciente é adquirir uma nova propriedade - subjetividade - e um traço definidor de subjetividade é o sentimento que permeia as imagens que experimentamos subjetivamente. (Damasio, 2010, Amazon loc. 248).
Isso não quer necessariamente dizer que ao precisar de um senso de centro, um conhecedor, também deva haver um agente causador vinculado ao centro, ou seja, o eu como um agente, um ego. Isso traz a questão do livre arbítrio.
Existe tal coisa, o livre arbítrio?
Na neurociência, a questão do livre-arbítrio é um tema quente e controverso que, por enquanto, gira em torno de um estudo realizado pela primeira vez na década de 1980. O fisiologista Benjamin Libet usou notoriamente o EEG para mostrar que a atividade no córtex motor do cérebro pode ser detectada cerca de 300 milissegundos antes de uma pessoa sentir que decidiu se mover no momento em que decidiu apertar um botão ou outro… Um fato agora parece indiscutível: alguns momentos antes de você estar ciente do que fará em seguida - um momento em que você subjetivamente parece ter total liberdade para se comportar como quiser - seu cérebro já determinou o que você fará. Você então se torna consciente dessa “decisão” e acredita que está no processo de fazê-lo. (Harris, 2012, p. 8).
Libet (1985) e Libet et al. (1967) realizaram experimentos mostrando que a atividade cerebral precedia decisões aparentemente conscientes do sujeito instruído, por exemplo, a levantar o dedo conforme desejasse. Desde então, ficou muito claro que processos inconscientes estão envolvidos mesmo quando sentimos que fazemos escolhas deliberadas (Ginot & Schore, 2015, Amazon loc. 756).
Isso pode ser uma informação bizarra e chocante, que desafia a sensação de quem ou do que realmente está determinando nossos pensamentos e comportamentos. Outra fonte coloca desta forma: Nossa percepção subjetiva surge da incansável busca dominante do hemisfério esquerdo para explicar esses fragmentos que surgiram na consciência. Observe que o verbo surgir está no tempo passado. Este é um processo de racionalização post hoc (depois disto - posterior). O intérprete que tece nossa história, apenas tece o que se torna consciente. Por ser a consciência um processo lento, o que quer que tenha chegado a ela já aconteceu. É fait accompli (fato consumado). (Gazzaniga, 2011, p. 104).
No que diz respeito à superstição, Bruce M. Hood, em seu livro SuperSense: How the Developing Brain Creates Supernatural Beliefs, aponta que “Em outras palavras, não há livre arbítrio na decisão de acreditar ou não” (Hood, 2009, p. 67). O mesmo poderia ser dito da consciência. Alguém gosta de música, mas ele decidiu gostar ou descobriu que gostava? De onde vêm os talentos ou habilidades? Segundo a ciência, qualquer coisa que decidimos "fazer" não depende apenas dos processos cerebrais que ocorrem antes da formação de algo na consciência, mas também de funções neurológicas para realizar a decisão. Beethoven não pôde mais conduzir porque ficou surdo, e Ravel não podia mais ler música depois de um derrame aos 60 anos. Sim, fazemos escolhas, mas de maneira alguma elas são gratuitas, pois sempre são dependentes de sistemas cerebrais subjacentes que funcionam silenciosamente. O que pode ser importante aqui é que, independentemente do que podemos ou não escolher, o fato que se destaca na ciência do cérebro é o de que por trás de tudo o que fazemos não há um eu, mas um cérebro. Isso pode ser particularmente importante em relação a como a questão do livre-arbítrio pode ou não se cruzar com os ensinamentos de Krishnamurti.
- Krishnamurti
A consciência sem escolha (choiceless awareness) implica estar objetivamente consciente, tanto externa quanto internamente, sem qualquer escolha. Apenas para ter consciência das cores, da tenda, das árvores, das montanhas, da natureza - apenas para ter consciência. Não escolha, digamos, "Eu gosto disso", "Eu não gosto daquilo" ou "Eu quero isso", "Eu não quero aquilo". Observar sem o observador. O observador é o passado, que é condicionado, portanto, ele está sempre olhando daquele ponto de vista condicionado e, sendo assim, há o gosto e o não gosto, minha raça, sua raça, meu deus, seu deus, e todo o resto. Nós estamos dizendo que estar atento implica observar o ambiente inteiro ao redor de você, as montanhas, as árvores, as paredes feias, as cidades. Atento, olhe para isto. E nessa observação não há decisão, nem vontade, nem escolha.
Ninguém em casa
Se, como indica a neurociência, o cérebro criou o sistema eu/ego, e, se as funções cerebrais estão silenciosamente por trás de todo comportamento, isso pode fazer com que nossa ideia de quem somos e do que a vida é se volte para uma direção muito diferente, e a conclusão pode ser a de que não estamos executando as coisas como pensávamos, talvez nem as executando. Além do mais, declarações de Krishnamurti podem apoiar isso. Primeiro, vamos ver o que ele diz sobre o esforço:
- Krishnamurti
Esforço implica controle, esforço implica conflito, interiormente, psicologicamente e externamente. Nós nos acostumamos à essa situação. Pessoas religiosas, pessoas de negócios de todo tipo devem fazer esforços. E nesse esforço está envolvida uma grande quantidade de energia, de conflito e assim por diante.
Ele também comenta como o eu está tentando alcançar uma posição ideal criando uma visão desejada do eu no futuro:
- Krishnamurti
Por que cada um de nós quer ser alguma coisa? Se sou feia, quero ser bonita; se eu sou estúpido, quero ser inteligente; se eu sou invejoso, quero ser livre da inveja. Então, há uma batalha constante entre o que sou e o que acho que deveria ser. O "deveria ser" é o objetivo de toda pessoa que quer se tornar, e nesse processo há luta infinita, dor, medo, frustração. E vendo este processo, consciente de que minha mente está presa na teia da tristeza, como posso me libertar da tristeza?
Krishnamurti parece estar desafiando o próprio papel da consciência na vida humana. Eu/ego, como a pesquisa o apresenta, é uma projeção do cérebro que dá uma sensação de controle, esforço e direção no futuro. Mas o que é isso que é "sentido" como esforço? Se está na consciência, como obviamente está, a sensação também deve ser uma imagem projetada da atividade cerebral anterior. A ciência diz que os esforços reais do cérebro não têm nenhuma sensação. Agora, é claro, precisamos de algumas dessas sensações para proteger o corpo contra danos, perigos, etc., mas esses desafios estão no presente. Penso que, se formos honestos, podemos ver que a preocupação que o eu/ego tem é baseada na projeções de seus medos e desejos no futuro e, como tal, muita ou talvez a maior parte da consciência é preenchida com essas imagens:
- Krishnamurti
Podem os olhos observar sem o passado? Deixe-me colocar de forma diferente: eu tenho uma imagem de mim mesmo, criada e imposta a mim pela cultura em que vivi. Eu também tenho minha própria imagem particular de mim mesmo; o que eu deveria ser e o que não. De fato, temos muitas imagens. Eu tenho uma imagem sobre você, sobre minha esposa, meus filhos, meu líder político, meu padre e assim por diante; então eu tenho dezenas de imagens. Você não tem? Agora, como você pode olhar sem uma imagem? Porque se você olhar com uma imagem, é obviamente uma distorção.
Uma avaliação honesta pode indicar que raramente estamos no presente. Houve uma passagem em um dos livros de Krishnamurti, onde ele está falando com um grupo de monges budistas, em que um dos monges, depois de uma extensa discussão, diz a Krishnamurti algo no sentido de que Krishnamurti levou uma vida de observação, e Krishnamurti respondeu “Está certo, senhor.” Esta declaração poderia ser tomada como uma resposta casual, mas, e se o monge teve um insight e a resposta de Krishnamurti foi bastante literal? Isso significaria que a utilização da consciência por Krishnamurti era predominantemente um lugar de intensa consciência observacional, em grande parte livre de preocupações futuras e das sensações de esforço associadas ao senso de eu/ego? Visto de uma outra perspectiva, a posição de Krishnamurti parece ser uma completa negação do livre arbítrio, pois os motivadores comportamentais deste só podem existir como uma sensação de desejo e conflito dentro do sistema eu/ego enquanto ele luta com as várias regras e regulamentos da vida. Seria lógico dizer que sem o sistema de eu/ego o futuro do eu, como uma projeção no “ato de se tornar”, não pode acontecer, e nem todas as defesas que o ego necessita empregar para se proteger. Também são perdidos todos os atrativos e viciadas sensações associadas ao eu/ego como sendo desejos. Krishnamurti certa vez perguntou a um questionador: “Você realmente quer isso? Certo? Que preço você está disposto a pagar por isso…?” Claramente, se alguém está em conflito com esse preço, o esforço para entender Krishnamurti pode não ser nada mais do que apenas outro “ato de se tornar”.
Uma vez que a neurociência é bastante clara quanto ao eu ser uma imagem e, portanto, imaginário, a indicação óbvia é a de que o cérebro é a fonte de tudo o que está acontecendo conosco, e não o construto que chamamos de eu. O cérebro deseja e sente que precisa da fantasia de si mesmo como controlador. Na Parte I desta série, a motivação para isso foi explorada e proposta a partir do medo. Não há temor no presente, mas, sim, a partir da lembrança do medo que é projetada no futuro, que há muito já foi enterrado no subconsciente e, embora enterrado, ainda é a fonte que gera a preocupação com o futuro. Sonhar com um futuro agradável, para preencher a consciência, desloca as preocupações mais sombrias. Isso significa, então, que a consciência está entupida de imagens obsessivas da memória, que criam imagens mais obsessivas como projeções futuras? Se assim for, isso indica que estamos bloqueando a observação e a participação no presente? Se estamos negligenciando o presente, como isso influencia as ações que tomamos para administrar nossas vidas?
- Krishnamurti
Quando alguém olha para tudo isso, e é alguém sério, pergunta-se: o que é ação correta? Qual é a coisa certa a fazer na vida? Não em um departamento específico dela, mas no todo, no processo total de viver, o que é a coisa certa a fazer? Sendo a palavra "preciso" - acurado, exato, sem distorção - o que é necessário fazer, a coisa certa a fazer na vida? Você se faz essa pergunta? Então, vamos investigar essa questão, porque a menos que descubramos, cada ação que fazemos leva a mais confusão, mais miséria, e o homem se torna uma entidade mecânica - na qual estamos nos tornando gradualmente. Então, descobrir qual é a coisa certa a fazer é algo muito importante para uma pessoa séria, e espero que você seja sério.
Outras questões também são levantadas a partir dessas preocupações. Nosso sistema cérebro/corpo é um produto do universo. Seus elementos foram trazidos à existência ao longo de cerca de 3,75 bilhões de anos como parte da evolução da continuidade da vida na Terra. Estamos aqui, assim como todos os aspectos da vida, como desenvolvimento e criação dentro do mesmo universo. Mas apenas a espécie humana parece não confiar no equipamento que lhe foi dado para lidar com a vida. É claro que, justiça seja feita, outras criaturas e formas de vida aparentemente não entendem a situação extrema em que a vida nos coloca, ou seja, a de não termos segurança absoluta. Saber disso nos faz, ou simplesmente aceitar as coisas como são, ou criar diferentes entretenimentos e fantasias, a fim de afastar essa consciência. No entanto, podemos pagar um alto preço pela fuga psicológica, pois ela pode causar colapso nos sistemas de vida com os quais estamos enredados no nível físico. O que nós parecemos não acreditar é que, se nós cuidarmos do presente, sendo totalmente conscientes, a melhor segurança surgirá sem esforço, simplesmente porque é essa a intenção do design básico do cérebro. Não a segurança perfeita, mas a melhor. Ao criar o eu/ego, o cérebro tentou sair da realidade de que a vida é um sistema em incessante modificação? Será possível que, ao fazê-lo, a miséria e a incerteza tenham sido introduzidas em uma escala inimaginável, advindas da cumplicidade da monstruosa criação do próprio cérebro, o ego?
- Krishnamurti
Nós começamos a descobrir que quando há a destruição de toda a autoridade que o homem criou para si mesmo, em seu desejo de estar seguro interiormente, então há criação. Destruição é criação. Então, se você abandonou as ideias, e não está se ajustando ao seu próprio padrão de existência ou a um novo padrão que você acha que, por exemplo, o orador está criando - se você foi tão longe - você descobrirá que o cérebro pode e deve funcionar apenas com o que diz respeito às coisas exteriores, responder apenas às exigências externas; sendo assim, o cérebro fica completamente quieto. Isso significa que a autoridade de suas experiências chegou ao fim e, portanto, é incapaz de criar ilusões.
Será que a vida que Krishnamurti viveu foi de aceitação em relação aos desdobramentos dos eventos no universo, tanto interior como exteriormente? Se assim for, isso pode indicar que o momento “agora” da criação contínua, tanto para o movimento da mente de Krishnamurti, quanto para tudo o que acontece exteriormente, era essencialmente o mesmo; tudo acontecendo internamente, com as funções de seu cérebro sendo emitidas da mesma fonte de todo o resto. A ironia é que o que parece impedir o cérebro de entender isso é a imaginação do eu, que é, se isso for correto, a memória do medo motivando a criação de um sistema próprio que exige a necessidade de um futuro imaginário. Krishnamurti respondeu a uma pergunta sobre qual seria o seu segredo: “Eu vou lhe contar qual é o meu segredo. Não me importo com o que acontece.” Partindo dos comentários reunidos aqui, sobre ciência cerebral e as próprias citações de Krishnamurti, a resposta dada parece ser um comentário sobre o tempo. Estará Krishnamurti indicando que aceitou completamente os desdobramentos do que pode acontecer, tanto dentro quanto fora dele, não como uma escolha ou algo a ser praticado, mas como um fato inexorável concernente a si mesmo como uma criação do universo interagindo com o resto da criação? Isso não significaria que os desdobramentos da criação são um fato além do controle, não influenciado pelo desejo humano de que a impermanência de tudo, que é o dilema básico, seja diferente?
Em resumo, parece incrível que as declarações desse homem, Krishnamurti, estejam tão intimamente alinhadas com as mais recentes descobertas científicas sobre o cérebro. Mas, além disso, ele fala do insight como sendo também uma função do cérebro, e isso ainda não foi, e talvez não possa, ser investigado pelas ferramentas da ciência. Krishnamurti parece indicar que o insight é uma operação especial, um peculiar alinhamento entre o cérebro e os elementos externos da criação, que resulta numa percepção não limitada pelo viés inerente ao conteúdo da memória. Pode-se apenas imaginar se é o insight o resultado de uma relação verdadeira entre o cérebro e a criação, que traz à consciência um senso inexorável da realidade e que transcende as questões de opinião e de interpretação. Se assim for, representaria verdadeiramente uma dimensão radicalmente diferente na capacidade do cérebro de perceber a realidade.
- Krishnamurti
Perceber todo esse movimento do indivíduo, suas atividades e suas organizações, é ter um insight “dentro” da totalidade do movimento percebido. E este mesmo insight “é” fora do tempo. Eu não sei se isso é compreendido. O insight não é uma lembrança, não é calculado, investigado, não é um resultado especulativo, não é um processo onde se registra e se age a partir do que foi registrado, já não é mais a atividade pensamento, que é o tempo. Portanto, o insight é a ação de uma mente que não está presa no tempo.
Artigo por Robert F. Steele, MA
Robert é um conselheiro de saúde mental aposentado e estudante vitalício de Krishnamurti.
Referências:
Damasio, A., (2010). Self Comes to Mind: Constructing the Conscious Brain.
Gazzaniga, M. (2011). Who’s in Charge?: Free Will and the Science of the Brain.
Ginot, E. & Schore, A. (2015). The Neuropsychology of the Unconscious: Integrating Brain and Mind in Psychotherapy.
Harris, S. (2012). Free Will.
Hood, B. (2009). SuperSense: How the Developing Brain Creates Supernatural Beliefs.
Libet. M., (1985). Unconscious cerebral initiative and the role of conscious will in voluntary actions. Behavioral and Brain Sciences, 8, 529-66.
Libet, M., Alberts, W. W., Wright, E. W. & Feinberg, B. (1967). Responses of human somatosensory cortex to stimuli below threshold for conscious sensation. Science, 158, 1597-600.
Pinker, S. (1997). How the Mind Works.
Sapolsky, R. M., (2017). Behave: The Biology of Humans at Our Best and Worst.
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